Eles gritavam muito e murmuravam, muitas vezes falando um dialeto que certamente eu não entendia bulhufas. O jogo ao qual gerava tanta polêmica consistia em um copo de madeira e dentro dele três dados. Alguém virava aquele copo com força na mesa e comemoravam algo ou não, quando os dados paravam revelando os números. A aposta era a 50 “cents” ou três cigarros.
Do lado direito, um solitário senhor tomava sua cerveja. Carrancudo, mas ainda assim, bastante cumprimentado. Soberbo, ele apenas balançava a cabaça quando as pessoas chegavam na mesa para falar com ele. Foi quando de repente à garçonete nos trouxe uma garrafa de cerveja morna. Ela nos avisa que era um presente do cavalheiro à direita, para minha surpresa.
Juan me olha, sua expressão é confusa como sempre. O senhor então levanta um copo, como se brinda, gritando:
- Buena onda! Buena onda!
Fiquei constrangido, porém fui cumprimentá-lo pela cerveja. Antes da metade do caminho que eu percorreria para chegar até ele, fui poupado, pois o carrancudo senhor veio ao meu encontro trazendo sua cerveja e sentando-se a nossa mesa, na cara dura.
Devidamente acomodado e de copo cheio, ele se apresenta.
- Me lhamo Rubens, soy professor de Matemática e vos?
Referia-se a mim. Rubens possuía nitidamente um sotaque argentino e então respondemos com boa vontade:
-Soy estudiante de Periodismo.
-Yo soy analista de sistemas.
Rubens então fez uma expressão de contentamento dizendo:
- Hijo de puta, neno! Estoy hablando com las personas correctas, estoy sempre aburrido i solo.
Pergunto a ele sobre todas as pessoas ao seu redor, sobre toda aquela gente que o cumprimentou e ele me responde que são um bando de ignorantes e bate na mesa irritado.
- Hijo de puta, neno! Yo conozco todo el mundo!
Claro que não! Aquele velho maltrapilho. Bateu-me então uma crise preconceituosa. Barba por fazer, paletó parecendo aqueles de dez reais que vende na Barroquinha, sapatos bico fino (e furados
- Sabe nenos...
Ele sempre usava essa expressão quando desejava demonstrar superioridade intelectual ou conhecimento por conta da sua idade. Certamente não aparentava um cara burro. Era articulado e atento.
- Soy Índio, pele colorada, índio americano.
Juan soltou uma gargalhada incontida por quatro segundos e parou, pediu desculpas e fez uma cara de que não estava compreendendo porra nenhuma. Agora tratava -se de um índio americano, professor de Matemática. Claro e por que não? As cholas silenciaram a conversa, tentando entender o que estávamos conversando e o que motivara a risada de Juan.
Mas, o que estava ainda por vir era muito mais revelador, Rubens então chama à garçonete que vem baforando um gigantesco charuto cubano, segundo ela. Rubens então pede que traga uma dose de pisco. Em menos de dois minutos es que retorna eficaz, com um copo do tipo de pinga, onde Rubens numa talagada só coloca pra dentro, para, respira fundo e depois de um suspiro nos diz:
- Yo vivo com um hombre hace 20 años.
A afirmativa cai como uma bomba de gás hélio. Vontade de rir, somado a desconfiança, mas afinal será que aquela cerveja, na cabeça dele poderia nos custar algum preço? Certamente não estávamos dispostos a pagá-lo.
Após o desabafo de Rubens, mais um minuto de silêncio. Ele agora olha para o copo de cerveja com os olhos cheios de lágrima e a cara retorcida como se discutisse consigo mesmo, como se estivesse imerso em pensamentos desagradáveis. Seus lábios tremiam e uma gota escorre pelo seu rosto enrugado. Logo ele enxuga a lágrima com a sua gravata azul marinho.
Juan me olha e balança a cabeça levemente para um lado e para o outro, a desaprovação do argentino é nítida.
Rubens então pede outra cerveja, acende um charuto cubano e nos olha com ar de riso, a cara fechada e tensa passa a se dissolver em nossa frente. Um largo sorriso se abriu e vira uma longa gargalhada.
- Seguro, esto es la verdad! Vivo com un hombre hace 20 años y nada me importa, no tengo medo de la sociedad, no quiero nada de vos chicos, me gusta solamente hablar.
Eu certamente já não conseguia compreender mais nada. Rubens era uma figura tombada pelo patrimônio de La Paz. Tive vontade de saber mais sobre aquele solitário homem. Não posso julgar suas palavras como mentira ou verdade, o fato é que passamos momentos interessantes, conversando com um sujeito diferente, com senso crítico aguçadíssimo e total coerência quando se referia aos fatos alheios. Só que no quesito vida pessoal, Rubens foi além e não nos fez claro o suficiente, talvez propositalmente, talvez inconsciente.
Minutos antes de deixarmos o boteco, Rubens pedira licença para ir ao banheiro. Não hesitamos em aproveitar a oportunidade para questionar à garçonete a real história dele, e surpreendentemente ela sabe apenas um pouco mais do que também sabemos. Ele freqüentava o bar há 20 anos e ninguém nunca soube da sua real história. Especula-se apenas sobre a sua nacionalidade, que seria chilena e que foi exilado do Chile na época de Pinochet.
Ainda aproveitando a ausência, pagamos as cervejas, exceto a que nos fora presenteada, nos levantamos no momento em que ele chegou, Juan então disse:
- Amigo, tenemos que ir!
Rubens nitidamente demonstrou tristeza, como se a nossa saída fosse representar o seu retorno ao mundo da solidão e dos pensamentos depressivos. Ele pergunta:
- Amigos, estoy a molestar?
- Seguro que no! Disse Juan!
- Entonces que se va bien nenos, hay que estudiar e cambiar el mundo. Gracias por la presencia.
Então respondi:
- Gracias a vos senhor!
Rubens sorri e me agradece a gentileza de falar em castelhano, elogia meu sotaque argentino, nos da um abraço, senta à sua mesa e a sua saga de solidão recomeça.
Seguimos em direção a saída e nos despedimos da garçonete. Já estávamos descendo quando Juan deslancha outra gargalhada no momento que escutamos:
- Que se va! Que se va!
Alguém nos pragueja!
Do lado direito, um solitário senhor tomava sua cerveja. Carrancudo, mas ainda assim, bastante cumprimentado. Soberbo, ele apenas balançava a cabaça quando as pessoas chegavam na mesa para falar com ele. Foi quando de repente à garçonete nos trouxe uma garrafa de cerveja morna. Ela nos avisa que era um presente do cavalheiro à direita, para minha surpresa.
Juan me olha, sua expressão é confusa como sempre. O senhor então levanta um copo, como se brinda, gritando:
- Buena onda! Buena onda!
Fiquei constrangido, porém fui cumprimentá-lo pela cerveja. Antes da metade do caminho que eu percorreria para chegar até ele, fui poupado, pois o carrancudo senhor veio ao meu encontro trazendo sua cerveja e sentando-se a nossa mesa, na cara dura.
Devidamente acomodado e de copo cheio, ele se apresenta.
- Me lhamo Rubens, soy professor de Matemática e vos?
Referia-se a mim. Rubens possuía nitidamente um sotaque argentino e então respondemos com boa vontade:
-Soy estudiante de Periodismo.
-Yo soy analista de sistemas.
Rubens então fez uma expressão de contentamento dizendo:
- Hijo de puta, neno! Estoy hablando com las personas correctas, estoy sempre aburrido i solo.
Pergunto a ele sobre todas as pessoas ao seu redor, sobre toda aquela gente que o cumprimentou e ele me responde que são um bando de ignorantes e bate na mesa irritado.
- Hijo de puta, neno! Yo conozco todo el mundo!
Claro que não! Aquele velho maltrapilho. Bateu-me então uma crise preconceituosa. Barba por fazer, paletó parecendo aqueles de dez reais que vende na Barroquinha, sapatos bico fino (e furados
- Sabe nenos...
Ele sempre usava essa expressão quando desejava demonstrar superioridade intelectual ou conhecimento por conta da sua idade. Certamente não aparentava um cara burro. Era articulado e atento.
- Soy Índio, pele colorada, índio americano.
Juan soltou uma gargalhada incontida por quatro segundos e parou, pediu desculpas e fez uma cara de que não estava compreendendo porra nenhuma. Agora tratava -se de um índio americano, professor de Matemática. Claro e por que não? As cholas silenciaram a conversa, tentando entender o que estávamos conversando e o que motivara a risada de Juan.
Mas, o que estava ainda por vir era muito mais revelador, Rubens então chama à garçonete que vem baforando um gigantesco charuto cubano, segundo ela. Rubens então pede que traga uma dose de pisco. Em menos de dois minutos es que retorna eficaz, com um copo do tipo de pinga, onde Rubens numa talagada só coloca pra dentro, para, respira fundo e depois de um suspiro nos diz:
- Yo vivo com um hombre hace 20 años.
A afirmativa cai como uma bomba de gás hélio. Vontade de rir, somado a desconfiança, mas afinal será que aquela cerveja, na cabeça dele poderia nos custar algum preço? Certamente não estávamos dispostos a pagá-lo.
Após o desabafo de Rubens, mais um minuto de silêncio. Ele agora olha para o copo de cerveja com os olhos cheios de lágrima e a cara retorcida como se discutisse consigo mesmo, como se estivesse imerso em pensamentos desagradáveis. Seus lábios tremiam e uma gota escorre pelo seu rosto enrugado. Logo ele enxuga a lágrima com a sua gravata azul marinho.
Juan me olha e balança a cabeça levemente para um lado e para o outro, a desaprovação do argentino é nítida.
Rubens então pede outra cerveja, acende um charuto cubano e nos olha com ar de riso, a cara fechada e tensa passa a se dissolver em nossa frente. Um largo sorriso se abriu e vira uma longa gargalhada.
- Seguro, esto es la verdad! Vivo com un hombre hace 20 años y nada me importa, no tengo medo de la sociedad, no quiero nada de vos chicos, me gusta solamente hablar.
Eu certamente já não conseguia compreender mais nada. Rubens era uma figura tombada pelo patrimônio de La Paz. Tive vontade de saber mais sobre aquele solitário homem. Não posso julgar suas palavras como mentira ou verdade, o fato é que passamos momentos interessantes, conversando com um sujeito diferente, com senso crítico aguçadíssimo e total coerência quando se referia aos fatos alheios. Só que no quesito vida pessoal, Rubens foi além e não nos fez claro o suficiente, talvez propositalmente, talvez inconsciente.
Minutos antes de deixarmos o boteco, Rubens pedira licença para ir ao banheiro. Não hesitamos em aproveitar a oportunidade para questionar à garçonete a real história dele, e surpreendentemente ela sabe apenas um pouco mais do que também sabemos. Ele freqüentava o bar há 20 anos e ninguém nunca soube da sua real história. Especula-se apenas sobre a sua nacionalidade, que seria chilena e que foi exilado do Chile na época de Pinochet.
Ainda aproveitando a ausência, pagamos as cervejas, exceto a que nos fora presenteada, nos levantamos no momento em que ele chegou, Juan então disse:
- Amigo, tenemos que ir!
Rubens nitidamente demonstrou tristeza, como se a nossa saída fosse representar o seu retorno ao mundo da solidão e dos pensamentos depressivos. Ele pergunta:
- Amigos, estoy a molestar?
- Seguro que no! Disse Juan!
- Entonces que se va bien nenos, hay que estudiar e cambiar el mundo. Gracias por la presencia.
Então respondi:
- Gracias a vos senhor!
Rubens sorri e me agradece a gentileza de falar em castelhano, elogia meu sotaque argentino, nos da um abraço, senta à sua mesa e a sua saga de solidão recomeça.
Seguimos em direção a saída e nos despedimos da garçonete. Já estávamos descendo quando Juan deslancha outra gargalhada no momento que escutamos:
- Que se va! Que se va!
Alguém nos pragueja!
*Leonardo Parente
Foto: Leonardo Parente (La Paz, 2007)
2 comentários:
Adorei suas aventuras Leonardo... Continue postando
Situação bastante inusitada. Além disso note que o conhecimento ainda é valorizado em meio a esse mundo cheio de valores cada vez mais fugazes e antagônicos.
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